Seja o seu aplauso, Francisco Carrasco

O isolamento nos colocou diante a algo que normalmente aos nossos olhos fogem, a nossa vida.

 

Não raro nos deparamos com um discurso de motivação, que tudo passará e seremos, como um mundo pós-guerra, irmãos. Olharemos ao nosso vizinho não mais pensando no incomodo que faz ao, meio da noite, chegar acompanhado e o salto ir pontuando o piso antes de quaisquer gemidos. Diremos, com o olhar da cumplicidade, após uma noite dessas no hall, quem sabe a caminho da padaria, a noite rendeu. Diria, talvez incrédulo, pois é.

Que iremos retornar aos dias de trabalho, antes odiosos, com as suas rixas, rivalidades e prazos apertados, em ternos apertados, gravatas sufocantes, sorrir ao sentar em suas cadeira, com a sua xícara que lhe lembra, você e todo o setor, que é uma pessoa preocupada com o meio ambiente. Possivelmente, esta segunda parte faça mais falta, os aplausos que nutrem e amortizam simultaneamente a nossa vaidade.

Nas sacadas, pela tevê, em um domingo à noite, as pessoas não noticiadas cantando e envolvendo os vizinhos, fazem jogos em países distantes, em países de primeiro mundo. Ainda não vi nenhuma sacada de um país sufocado na fome, mas posso ter sintonizado erroneamente, e como somos filhos da mesma agonia, não importa se cantam na Itália ou Espanha, a dor é a mesma, não é?

No Fantástico, o dj Alock com a sua live. Penso: deve ter sido um inferno aos vizinhos enquanto o jornal lança às alturas, ainda mais altas daquele apartamento, um transe coletivo de alegria como uma panaceia a um dos lados do isolamento, o tédio, também anunciado. Viro a minha esposa: tenho dó dos vizinhos que tiveram, querendo ou não, ouvi-lo. Mas a tevê contra-argumentou, como se me ouvisse. E lançou a filmagem de sacadas em festa. Não gostaria de ser o vizinho do Alock, mas creio que viva muito bem, em um bairro muito mais bem estruturado que o meu.

E as lives vêm e vão sem deixar espaço, uma agenda de horários para que não se choquem. Ocupam aqueles que se encontram desocupados. Os artistas devem se manter no brilho, uma das preocupações que circule na cabeça de seus produtores, e, estar fornecendo no momento de angústia, o sopro de vida, seja emergencial. Mas eles, como muitos, necessitam, como o rapaz do escritório, que a sua fome de palmas seja saciada.

E os feeds, jornais, psicólogos do youtube: este momento é difícil. Filhos são difíceis, reorganizar a rotina é difícil.

Digo: encarar a vida é complicado. Afinal, a maioria de nós apenas existe. Como disse o hedonista inglês.

Antes do isolamento, por quantas vezes a nossa vida foi roubada, e precisávamos apenas das míseras migalhas da existência. Os pequenos aplausos. O sopro do patrão de que está fazendo um trabalho considerável, quando muito se ouve. Que precisamos ir à rua e saber que suscitamos desejos, é natural do homem, ser desejado por algo, beleza, intelecto ou o copo reutilizável.

Encontrar-se consigo, sem os aplausos, pode ser uma grande merda. Mas vale pensar, precisa realmente de ser reconhecido. Cada vez, com mais frequência, vejo as pessoas se elogiando, acho bonito, e às vezes, uma bobagem o desgaste dos parabéns. Afinal, é uma atitude ética pensar em reutilizar o copinho.

Bem, por inúmeras vezes me vi afastado do que me causa prazer na vida, a leitura. Ora por conta do trabalho que levava para casa e deveria fazer da melhor forma, quem sabe na necessidade de ser melhor, quem sabe desejasse inconscientemente um tapinha nas costas, ou era responsabilidade. Afastei-me também na faculdade, por antagônico que seja, o curso de Letras não me permitia ler o que me dava prazer, e diante de um Balzac, Flaubert ou Tosltói. Deveria ler a sobre a transcrição fonética da língua inglesa decorando todos os seus símbolos, tônicas...

Li, durante este isolamento alguns que se acumulavam virgens na minha estante. Tem sido uma chance de viver com algo que me faz bem. Então viva. Descubra que perdeu muito da vida de quem está ao seu lado, pois a correria não lhe permitia sorrir durante um jantar. Busque naquilo que lhe dá prazer, e se o prazer está em ir à faculdade, ao parque, à praia, estar com os amigos ou parentes. Que seja, mas seja você intensamente dentro de sua vida sem a tenção de a fazer ordinária como poderia ter sido antes da crise.

 

Neste domingo, fiz macarrão com salsicha. Primeiro, a salsicha não tem mais o gosto que possuia na infância. Tornou-se ruim, se ainda é a mesma. Segundo, um pouco de culpa do Sheldon do The Big Bang Theory com este tal prato que lhe lembra a infância e o conforto da família, da vovó.

Se arrisque ao novo. Há quem goste de macarrão com salsicha e quem não. Você não tem obrigação de ir a sacada. Mas se for, que cante e que seja Martinho da Vila: Cante, cante, minha gente, deixa esta tristeza pra lá.


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